Neste artigo, o cavaleiro e jornalista Filipe Masetti Leite conta mais um mês de sua aventura entre Alaska e Canadá
Eles dizem que o Estado de British Columbia, no Canadá, é ‘O Melhor Lugar da Terra’. E, no mês passado, foi. Os dias foram preenchidos com vistas deslumbrantes, pessoas gentis e passeios agradáveis. Mas como o céu, sempre há o inferno. E, um dia no meio do verão, o inferno congelou.
Tudo começou bem. Saí de Watson Lake em uma manhã quente de agosto. Com meus cavalos Mac e Smokey se sentindo bem após três dias de folga. Alguns quilômetros depois, na Alaska Highway, entramos em BC e recebemos uma inesperada recepção. Os membros do Conselho Kaska Dena nos receberam à entrada da cidade de Lower Post.
Clara Davel, minha namorada argentina e motorista de apoio, radiante com a generosidade deles, disse: “Eles encheram nosso tanque e todas as latas de gasolina e nos deram um monte de mantimentos e esse moletom com capuz para mim”.
Na noite seguinte, de volta à fronteira do Estado de Yukon, ainda em BC, comemoramos o 25º aniversário de Clara. Com Smokey e eu em BC e Clara e Mac em Yukon, nós aproveitamos um bolo enquanto eles mastigavam seus cubos de alfafa. Os quatro usando chapéus de festa arco-íris. “Eu te amo Clara, feliz aniversário”, eu disse.
De manhã, entramos nas Northern Rocky Mountains e tudo mudou. A estrada que abraça o penhasco, imprensada entre o Liard Lake e as superfícies rochosas irregulares, era extremamente perigosa. Autocaravanas e caminhões de transporte rugiam entre os cavalos e eu, às vezes passando a centímetros de nós.
Bisões
A viagem se tornou um inferno. Mas tivemos problemas muito maiores ao nosso redor. Mais exatamente, cada um desses problemas pesava 600 quilos e andavam em manadas: Bisões da Floresta.
Esses animais, com chifres afiados no alto de suas cabeças, são extremamente territoriais. Prendi a respiração toda vez que cruzei o caminho deles. Os machos sempre mantinham os olhos nos cavalos enquanto os filhotes corriam para a floresta com suas mães. Smokey e Mac bufavam e tentavam fugir, mas lutei para segurá-los.
Nunca fomos perseguidos, mas o maior macho do último rebanho por onde passamos começou a cavucar a terra. Em uma explosão de poder, bateu repetidamente com a cabeça.
Depois de 200 quilômetros no território dos Bisões da Floresta, chegamos Liard Hot Springs Provincial Park para descansar. Conhecemos uma família maravilhosa que nos deu um delicioso peixe, que eles haviam fisgado no dia anterior.
Filipe Leite foi o primeiro brasileiro a cruzar a cavalo a Alaska Highway
Foi nosso jantar. E eles fizeram também uma doação de US$ 100,00 para o Hospital de Amor, de Barretos/SP. “Vocês nos inspiraram com sua história. Você é tão jovem e está fazendo algo tão bonito”, disse Shannon Moleski.
Novamente na estrada
De volta à viagem tensa para o sul pelas Montanhas Rochosas, a cada curva da estrada podíamos nos deparar com uma surpresa. Apenas a 60 quilômetros adiante, enfrentamos o nosso maior desafio: a rocha cortada ao redor do Muncho Lake.
O lago verde-jade é ladeado por montanhas que se estendem até as nuvens e são refletidas de volta em suas águas serenas. Clara ficou atrás de mim e pediu para caminhões e carros desacelerarem.
Em um dos piores trechos, em uma curva sem espaço, Clara dirigiu o motorhome atrás de nós, com o pisca-pisca ligado. Quando passamos, os deparamos com um caminhão puxando um trailer trás de Clara.
O rugido do motor enviou meus mustangs a um galope cheio de adrenalina. Eu lutei para detê-los quando o trailer passou por nós, seguido por outro veículo. Por um segundo, pensei que estava tudo acabado.
No entanto, nada poderia ter nos preparado para o que ainda estava por vir. Em 17 de agosto, apenas 30 quilômetros antes do Toad River, a chuva que caíra por dias ficou mais densa, o vento aumentou e a temperatura caiu.
Flocos de neve no meio do caminho
Depois de mais um longo dia na sela, decidi colocar cobertores nos cavalos. No caso de Smokey, transformou-se em rodeio – ele pisou na câmera de vídeo e quebrou meu tripé. Levou uma hora essa agitação, me custando algumas gotas de sangue.
Logo após o jantar, o que eu esperava que não acontecesse aconteceu. Começou a nevar. “Bem-vinda a um verão típico do Canadá”, eu disse a Clara, tentando aliviar o clima pesado.
Pela manhã, acordamos em um país das maravilhas do inverno. Mais de um pé de neve cobria o mundo à nossa volta. Mac e Smokey estavam sob altos pinheiros, agradáveis e aconchegantes, graças aos cobertores.
Com o termômetro lendo -4 ° C, e minhas botas de caubói enterradas na neve, selei Mac e comecei o dia mais doloroso dessa terceira e última longa viagem. Grandes flocos de neve molhada batiam no meu rosto.
Inclinei meu chapéu de cowboy para baixo para proteger meus olhos. Meus mustangs só queriam virar as costas para a neve. Eles não conseguiam entender por que estávamos cavalgando diretamente para esta terrível tempestade.
Eu estava congelado naquela sela. Com pé e mãos rígidos, comecei a me perguntar o que estava fazendo da minha vida; questionando minha decisão de deixar Calgary sete anos atrás. “Não é um dia muito agradável para andar a cavalo”, uma mulher gritou de um caminhão branco, dirigindo lentamente para o sul ao meu lado.
“Não senhora”, eu disse a ela, “mas estou viajando para divulgar a causa do hospital infantil de câncer no Brasil, não posso parar”. Ela tirou uma foto minha e partiu. Alguns metros adiante, as luzes do freio acenderam e o caminhão deu marcha à ré em minha direção.
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“É tudo o que temos, boa sorte” e me passou uma nota de US$ 20 amassada. Eu chorei. Naquele momento, fui transportado milhares de quilômetros ao sul, para o meu país de origem. Para aquele hospital onde conheci tantas crianças lutando pela vida com sorrisos no rosto.
Endireitei as costas e trotei meus cavalos. Pouco antes de nossa chegada ao Toad River, um motorista de ‘limpa-neves’ parou para verificar se Clara, estacionada na beira da estrada esperando por mim, estava bem.
Ela explicou o que estávamos fazendo naquela manhã e ele ofereceu um lugar para ficarmos e um curral para os ‘meninos’. Uma hora depois, estávamos na casa de sua mãe com sua família, comendo uma tigela fumegante de sopa.
“A região tem uma população de cerca de 40 pessoas e mais de 200 cavalos”, disse Nathaniel Steward, do outro lado da mesa. Perto de algumas das melhores áreas de caça da América do Norte, o Toad River é o lar de grandes fabricantes de roupas. Está em um vale deslumbrante, cercado por montanhas, com pastos cheios de cavalos nos dois lados da estrada.
Depois do descanso, mas um trecho
Tivemos um dia de folga com a família de Steward quando a neve derreteu. Então começamos nosso último percurso a fim de atravessar as Northern Rocky Mountains. Mas antes de sairmos, recebemos um aviso de Steward.
“Existem dois ursos logo após o Summit Lake. Eles estão do lado da estrada comendo raízes e não estão dão mostra de que sairão de lá tão cedo”. Com certeza, dois dias depois, após atravessar o ponto mais alto da Alaska Highway – o Summit Lake, a 1295 metros -, vi os dois ursos machos.
Passamos muito perto e tentei segurar os cavalos. Andamos em círculos por um minuto enquanto eu analisava minhas opções. Na estrada estreita, não havia como eu me arriscar e andar a dois passos de dois grandes ursos.
O North Tetsa River corria paralelo à estrada, nas profundezas de suas margens íngremes. O rio estava atormentado por grandes pedregulhos. Para chegar nele, eu teria que cavalgar pela margem também cheia de pedras grandes. Perigoso, mas minha única opção.
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Dei os comandos, esperando que os ursos não chegassem perto para cheirar meus cavalos. E torcendo para que Mac e Smokey continuassem alheios ao perigo à frente. Demorou um pouco para convencer Smokey a descer a ladeira rochosa, mas ele o fez e Mac o seguiu.
Os cavalos abriram caminho para o sul no rio enquanto eu me abaixava na sela, tentando nos tornar ‘invisíveis’. Orei, a certa altura, para que os ursos, apenas alguns metros à nossa esquerda, não prestassem atenção em nós. O som dos cascos dos cavalos afundando na água, às vezes na altura da barriga, iam atingindo os grandes pedregulhos.
A ansiedade aumentou. “Por favor, Deus, que eles fiquem longe”, eu sussurrei várias vezes enquanto escapávamos, com meus joelhos tremendo. A cena foi digna de um filme western.
Quando senti que estava longe o suficiente dos animais, cerca de 400 metros ao sul, conduzi os cavalos para fora do rio, sobre a margem e de volta à estrada. Quando olhei para trás, um dos ursos estava em pé, tentando nos cheirar. Meu coração disparou.
Continuei sussurrando meu mantra. Quando finalmente saímos de vista, acelerei. Andar meio quilômetro naquele rio pode ter nos mantido vivos, mas também fez com que Smokey perdesse uma de suas ferraduras traseiras e afrouxasse a outra.
Então, a apenas quatro quilômetros dos ursos, tive que parar. Peguei minhas ferramentas de ferrador e começar a trabalhar. Quando a chuva ficou mais forte, tinha conseguido pegar a nova ferradura e recolocado a outro antes de continuar para o sul.
Alguns dias depois, contra todas as probabilidades, entramos em Fort Nelson. Meu corpo doía do fio de cabelo à ponta dos pés. Mas eu me senti mais vivo do que nunca. Apenas 450 quilômetros depois, terminamos a Alasca Highway.
Por Filipe Masetti Leite para o The Star
Em sua terceira longa jornada, o jornalista e cavaleiro saiu de Fairbanks, Alaska, no dia 17 de maio, e vai cavalgar quatro mil quilômetros até chegar ao maior rodeio do Canadá – e um dos maiores do mundo -, o Calgary Stampede, em julho de 2020. Acompanhe: www.instagram.com/filipemasetti.
Fotos: Cedidas