Antes de mais nada, Equoterapia é um termo amplo, referindo-se às várias áreas que empregam o cavalo por equipes multidisciplinares, com objetivos terapêuticos variados. Dentre suas subdivisões está a Hipoterapia, que se destina à utilização do cavalo por um fisioterapeuta e equipe para o tratamento de reabilitação.
Os efeitos motores e psíquicos do tratamento com o cavalo são os que produzem os resultados terapêuticos. Na Hipoterapia, após avaliação pelo fisioterapeuta – com indicação de um neurologista ou neuropediatra -, conduz-se o trabalho um fisioterapeuta especializado, com o auxílio de assistentes, além do tratador do cavalo. Esta modalidade terapêutica complementa a reabilitação motora de pacientes portadores de deficiências diversas.
Podemos dizer que a Hipoterapia baseia-se na terapia de um ser vivo, o paciente, através de outro ser vivo, o cavalo. Este, ao movimentar-se, provoca o deslocamento tridimensional do centro de gravidade do paciente, com cadência, ritmo e trajetória similares ao movimento pélvico observado na deambulação humana.
Em resumo, é impressionante observar o comportamento de indivíduos portadores de grandes incapacidades, que convivem diariamente com a impotência para a realização de atividades simples, diante da possibilidade de comandar um cavalo e desfrutar o deslocamento livre no espaço, como que trocando momentaneamente ‘duas pernas paralisadas por quatro boas’.
Para nos aprofundar um pouco e entender melhor essa técnica, conversamos com o fisioterapeuta Fernando Guimarães, que tem uma clínica de Hipoterapia no Clube Hípico de Santo Amaro, em São Paulo. Ao estudar sobre essa forma de trabalho na Áustria, ele a implementou no Brasil há mais de 30 anos. Confira!
Utiliza-se a Hipoterapia no tratamento de quais síndromes/doenças?
“A Hipoterapia é indicada para qualquer patologia ligada ao sistema nervoso central, ou seja, tudo que mexe com equilíbrio. Assim, atuamos com pacientes que tem tenham paralisia cerebral – Encefalopatia Crônica Não Progressiva; AVE – Acidente Vascular Encefálico (derrame); Esclerose Múltipla, Parkinson, traumatismos cranioencefálicos; lesados medulares.
Na clínica, também atendemos muitos pacientes com Síndrome de Down, Autismo. Bem como algumas síndromes que não são muito conhecidos público, Síndrome de Lennox-Gastaut e a Síndrome Angio-osteohipertrófica, que têm características próprias.
Primeiro passo: fazer uma anaminese para saber se a Hipoterapia é realmente indicada para o paciente. Dependemos de alguns fatores para que a técnica surta efeito, como o grau do estágio da patologia ou da idade do paciente, por exemplo. Então, essa entrevista prévia nos ajuda a entender melhor o caso para que possamos, enquanto fisioterapeutas, atuar de maneira eficaz.
Fazemos, portanto, a terapia em cima do cavalo e cada sessão dura 30 minutos. Em alguns casos, damos um tempo a mais para que o paciente tenha um contato maior com o cavalo, por exemplo, escovando-o. É muito interessante também esse vínculo do cavalo e do paciente. Além de escovar, dar comida, entre outros.
Nesses 30 minutos, dependendo do paciente, fazemos diversas mudanças posturais, diversas mudanças de decúbito, uma série de exercícios de posicionamento. E a cada ação queremos ganhar alguma coisa na evolução desse paciente”.
Na Hipoterapia, trabalha-se com quais partes do corpo?
“O cavalo trabalha sempre antagonicamente qualquer padrão patológico. Então, se a criança é espástica, que seria mais rígida, o cavalo consegue relaxar essa musculatura, deixar o tônus mais perto da normotonia possível. Ou seja, ao seu estado normal ou ideal. O mesmo se o paciente é hipertônico (musculatura mais tensa) ou hipotônico (musculatura mais flácida), nós também conseguimos deixar deixar o tônus mais perto da normotonia possível.
E a base está na pélvis. Dizemos que a Hipoterapia é única terapia tridimensional simultânea. São três ondas de movimento ao mesmo tempo – um lado pro outro, para cima e para baixo, para frente e para trás. E ainda tem um movimento rotacional, propiciado também pela movimentação que o cavalo realiza sobre a pélvis.
E esse movimento é muito similar ao movimento da marcha humana, da pélvis quando gente anda. Assim, por repetição quebramos o padrão, melhoramos a qualidade do tônus e damos função. Como disse acima, a cada posicionamento queremos ganhar alguma coisa, mas todo o trabalho é feito através da pélvis. Local do corpo humano onde o cavalo propicia nitidamente os movimentos tridimensionais.
E conseguimos assim trabalhar toda a parte de membros inferiores, com fortalecimento, bem como a parte de membros superiores, também alongando e fortalecendo. A cada sessão melhoramos as ações de proteção, de equilíbrio, de assimetria”.
Há um ganho também motivacional para o paciente quando percebe sua evolução?
“Sim, tem outro ponto bastante importante dentro de tudo que conseguimos ganhar na Hipoterapia. Não só sobre o ponto de vista motor, como também sobre o ponto de vista psicológico, que é o sistema motivacional, já que estamos fora do ambiente médico, fora da sala terapêutica.
Para crianças e adultos que são restritos a cadeira de rodas, por exemplo, ou restritos a um leito, de repente estão montando um cavalo. Ou seja, um ser que é muito maior e mais forte do que eles. Naquele momento, durante os 30 minutos de sessão, eles dominam esse ser. Ter a independência de poder ir e vir é de suma importância para a autoestima deles, autoconfiança.
Só para ilustrar, recebemos bastante pacientes hoje em dia com transtornos do espectro autista e transtornos de déficit de atenção. Trabalhamos muito essa parte motivacional com eles. Os tiramos da zona de conforto, aumentando o leque de coisas que eles fazem. Dessa forma, a Hipoterapia melhora a qualidade do tempo deles.
A cada sessão, mostramos a eles que há outras formas de realizar tarefas. Trabalhamos também a concentração. São 30 minutos em que mantemos o paciente focado no cavalo e ele aprende, portanto, a ter foco em outros momentos do seu dia a dia. Um sistema motivacional.
Importante falarmos ainda que o ideal, para resultados mais positivos, são sessões duas vezes por semana. Porque o efeito de cada terapia dura de 48 a 72 horas, por isso o ideal é que quando acabasse o efeito de uma começasse o de outra. Mas entendemos que muitas vezes pelo valor ou pela distância, não é possível. Hoje, 80% dos meus pacientes têm uma sessão semanal; 15% fazem duas sessões por semana; e 5% conseguem vir três vezes por semana”.
Como você enxerga a importância do tratamento com a Hipoterapia?
“Acho que é fundamental. Na verdade, ele tem que ser complementar às terapias convencionais, tem que ser obrigatório, porque os ganhos são muito grandes. A gente vê uma melhora no quadro motor do paciente muito nítido. Mas como eu disse, acima de tudo, tem que ser através de um sistema motivacional, o paciente tem que gostar daquilo. Quando se gosta de algo, fazemos com muito mais facilidade.
Em atividades com cavalo, o medo de montar, por exemplo, é fácil de superar. Mas se não gostar de montar, não tem motivo de fazê-lo. Os pais ou responsáveis só estarão ‘rasgando’ dinheiro e perdendo tempo. Então, eu acho que hoje já se entende mais o que é o cavalo, mas penso que as pessoas precisam se preparar para tal atividade.
Do lado do profissional, entender não só da parte de hipologia, como também da parte de neurologia. Já do lado dos responsáveis, saber que é um tratamento e não passeio. Tem muita gente que, às vezes, leva a criança como se fosse dar uma volta em Campos do Jordão ou Serra Negra.
E o trabalho não é esse, é muito mais rico. O cavalo propicia muitas coisas. Tanto na parte motora quanto na parte psicológica a gente tem grande ajuda do cavalo. Ele é uma ferramenta ímpar, especialmente por tudo o que já falamos ao longo dessa conversa”.
Em que patamar ela ainda pode chegar no Brasil?
“O ideal é que houvesse apoio de mais prefeituras e que mais centros de treinamento incluíssem em suas programações. Nos Estados Unidos e na Europa é bem mais amplificado. No Brasil já melhorou muito, sobretudo através do trabalho da ANDE-Brasil, a Associação Nacional de Equoterapia.
Eles divulgam e difundem bastante as terapias com cavalos. E assim as pessoas conseguem ver que realmente vale a pena. Além disso, tem muito estudo científico já provando os benefícios das terapias com cavalo. É possível chegar, por aqui, em um patamar ainda mais alto.
Minha maior preocupação, no entanto, é quanto aos profissionais. Eu sempre falo que são várias as contraindicações para a Hipoterapia, entre elas, em minha opinião, a maior de todas é o terapeuta ruim. Inclusive, comento isso em cursos e palestras. Cavalo ruim com terapeuta bom você faz a terapia, mas com cavalo bom e terapeuta ruim não tem terapia. Precisamos tomar muito cuidado com isso”.
Na sua outra vertente profissional, com o vôlei, já utilizou o cavalo?
“Essa história com o vôlei começou em 1997. Eu era fisioterapeuta e meu irmão o técnico e começamos a levar as meninas do time para cima do cavalo. Entre outros, atividades que ajudavam a melhorar o equilíbrio, a postura, o fortalecimento de vários grupos musculares que elas nunca trabalharam, assim como o reconhecimento de líderes.
Então, usamos dois cavalos e separamos as meninas em duas equipes de seis em cada atividade. E colocamos elas em várias tarefas a fim de que cumprissem visando a vitória de uma equipe sobre a outra. Assim, elas precisavam determinar estratégia para fazer a volta mais rápida, por exemplo, e como um membro podia ajudar o outro.
Promovíamos várias de gincanas utilizando o cavalo com o intuito delas se ajudarem. Às vezes, colocávamos duas no mesmo cavalo e elas tinham que definir posições, comandos, estratégia para vencer. E foi muito legal, sobretudo, o reconhecimento dos líderes para a capitã da equipe. Cada passo definido por ela para buscar êxito sobre o time adversário, tudo utilizando tarefas com o cavalo”.
No vôlei sentado você utiliza esse método no treinamento dos atletas?
“Inclusive, foi até tema de um trabalho que eu apresentei no Congresso Mundial de Hipoteraia no ano 2000 na França. E como comecei a trabalhar com equipes paralímpicas também resolvi fazer com os meus atletas do vôlei sentado.
Entre eles, fiz com a Gisele, atleta do Sesi, que é a melhor levantadora e a melhor líbero do mundo e é da seleção brasileira paralímpica. Também fiz com o Tiago, que é da minha equipe em São Paulo, do Paulistano. E eles adoraram, foi uma experiência muito bacana. Mas veio a pandemia e a gente não conseguiu continuar.
Mas para eles é espetacular, principalmente para o Tiago que é cadeirante. Em cima do cavalo, ele tem movimentação dos membros superiores, consegue equitar o cavalo sozinho, isso é bárbaro. A Gisele não tem problema de locomoção, mas é extremamente inteligente e competitiva. Todo desafio que eu passo, ela consegue fazer. Estava sendo super bacana e positivo para eles como atletas, e espero retomar em breve.”
Por Luciana Omena
Crédito da foto de chamada: Divulgação/GreenHilltherapy
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