Jornalista e cavaleiro de longa distancia, Filipe Masetti Leite conta a seguir como foram os últimos passos antes da retomada de sua última jornada
Passei a maior parte dos últimos oito anos vivendo em uma espécie de isolamento social com meus cavalos ao ar livre. Tendo percorrido mais de 26 mil quilômetros nas Américas do Norte, Central e do Sul, houve trechos em que não via ou falava com outro ser humano por dias. Às vezes, até por mais de uma semana. Foi, de fato, uma experiência solitária e que me fez sentir falta da minha família e amigos mais do que eu jamais poderia imaginar. Com lágrimas nos olhos, eu me agachava perto da fogueira no topo de uma montanha e tudo que eu ansiava era por um abraço.
Acima de tudo, eu conhecia meu objetivo. Mas alguns dias foram difíceis. Esses trechos solitários me fizeram perceber que a vida é para ser compartilhada. A cada passo adiante, eu fazia uma jornada mais profunda dentro de mim, em minha mente. Por um bom tempo. Contudo, pode ser perigoso se você demorar demais nessa condição. Mas também aprendi algumas das lições mais significativas da minha vida.
Água é vida. A natureza é minha religião. Meus cavalos são uma extensão do meu corpo e um espelho para a minha alma.
Aprendizado e pandemia
As minhas jornadas de longa distancia me mostraram alguns dos lugares mais bonitos que as Américas têm a oferecer. Por outro lado, senti o calor humano quando as pessoas abriram suas casas. Agricultores, banqueiros, políticos, traficantes, fazendeiros, seja como for, fui recebido nas casas de mais de mil pessoas que me ajudaram sem pedir nada em troca.
Meu tempo na sela também me trouxe uma dor física que algumas pessoas nunca experimentaram na vida. Nevascas de fato congelantes, secas implacáveis, florestas infestadas de ursos, guerra contra drogas e incêndios devastadores. Atravessei todos eles. No entanto, nunca imaginei que meu maior desafio viria na reta final. E que seria invisível.
A pandemia da COVID-19 parou o mundo, as fronteiras foram fechadas e todas as cidades vivem uma crise econômica sem precedentes. Dezenas de milhares de pessoas morreram e os planos para 2020 foram arruinados ou limitados até certo ponto. E isso me inclui.
Projeto final
No ano passado, depois de percorrer 2.600 quilômetros de Fairbanks, no Alasca, até Grande Prairie, Alberta, a primeira parte da minha última cavalgada de longa distancia, soltei meus cavalos Mac e Smokey em um belo pasto e disse a eles para passar um ótimo inverno. Eles me foram emprestados pelo mestre cavaleiro Aaron Stelkia, Osoyoos Indian Band, e pelo canadense Long Rider, Jim McCrae.
Os mustangs, sobretudo, estão me permitindo viajar uma média mensal de 660 quilômetros – quase o dobro do que costumava cobrir em minhas viagens anteriores. Agradeci a eles antes de fazer a pausa por conta do rigoroso inverno e eles ficaram no vale Okanagan, Canadá, aguardando a retomada da jornada.
Voltei para o Canadá. Meu plano era começar a percorrer os 800 quilômetros finais que me restam para atravessar as Américas e chegar a Calgary no dia 3 de julho, bem a tempo da abertura do ‘maior rodeio ao ar livre do mundo’. Foi desse mesmo local, o Calgary Stampede, que tudo começou, em 2012.
Em 23 de abril foi anunciado o cancelamento do centenário e tradicional rodeio. Dana Peers, presidente de Calgary Stampede, me avisou uma semana antes do anúncio oficial logo após a tomada de uma das mais difíceis decisões visando a saúde e a segurança pública. As palavras dele me atingiram como um ‘chute’ no estômago.
De volta à estrada
Clara Davel, minha namorada e motorista de apoio para esta etapa final da jornada, e eu estávamos em Great White North, a milhares de quilômetros de distância de nossas casas. Fazíamos a quarentena obrigatória enquanto colocávamos Mac e Smokey em forma após o longo inverno. Com as fronteiras do Canadá fechadas, voltar para casa não era mais uma opção. Então, o que iríamos fazer? Eu não sabia o que dizer. Estava sem palavras e só queria acordar desse pesadelo. Resolvemos continuar o treinamento dos cavalos e aguardar.
Até que no dia 30 de abril, o primeiro-ministro Jason Kenney anunciou que o Wild Rose Country começaria a suspender as restrições a partir de 4 de maio. Dessa forma, pudemos finalmente nos reprogramar. O anúncio de Kenney foi a luz que precisávamos ver no fim do túnel. E voltamos a planejar nossa viagem com saída de Grande Prairie.
Com o propósito de percorrer o último trecho que me resta nas Américas, em 20 de maio montei meus cavalos. Devido a toda as mudanças por conta do coronavírus, seguirei pela Highway 40, menos povoada, para o sul, até Calgary. Uma vez que meu plano original era percorrer a Highway 22, conhecida como ‘Cowboy Trail’.
Graças ao veículo de suporte, um motorhome Econoline de 1990, somos auto-suficientes. Levamos água, grãos e feno para os cavalos e comida para nós. Também podemos transportar gasolina suficiente para durar algumas semanas ou um mês. Afinal, viajamos apenas 30 quilômetros por dia.
Solidariedade
Uma das primeiras lições que você aprende quando se é um jovem caubói é que, se um cavalo, um touro ou a vida o joga na terra, você pega seu chapéu, escova a poeira e volta. Desistir nunca é uma opção! Minha viagem serviu com um ‘farol de esperança’ para muitos que enfrentaram tempos difíceis nos últimos oito anos. Como os pacientes do Hospital de Amor, de Barretos, entidade que levo a bandeira comigo e faço campanha de arrecadação de fundos durante minhas jornadas.
Infelizmente, devido ao coronavírus, o hospital que trata mais de 1,3 milhão de pessoas todos os anos, gratuitamente, está enfrentando dificuldades financeiras. Essa ajuda ocorre graças à gentileza de milhares de doadores e, desde o início da pandemia, as doações caíram cerca de US $ 2,5 milhões (canadenses) por mês. Eles, antes de mais nada, precisam de ajuda para continuar operando e tratando os pacientes com a excelência que eles merecem.
Agora, mais do que nunca, preciso terminar essa viagem. Quero ajudá-los a vencer essa luta, levantando fundos necessários para este hospital extraordinário. Mas o mais importante é que quero oferecer esperança.
Sonho
Era uma vez, eu tinha 26.800 quilômetros para percorrer. Muitos me chamavam de louco. Disseram que não conseguiria. Que eu morreria tentando. Isso era impossível. Agora, apenas 800 quilômetros me separam de terminar o sonho da minha vida. Tornando-se a terceira pessoa do mundo a atravessar as Américas a cavalo.
Talvez a maior lição que aprendi com o tempo que passei seja que a vida é muito curta para se perguntar o que aconteceria. Essa oportunidade que nos foi concedida para respirar, aprender e crescer pode ser tirada com um simples toque – como estamos vendo agora.
Viajarei para Calgary e chegarei em julho, mesmo que ninguém esteja esperando.
Por Filipe Masetti Leite para o Toronto The Star
Em sua terceira longa jornada, o jornalista e cavaleiro começou em 17 de maio de 2019 a cavalgar quatro mil quilômetros – de Fairbanks, Alaska, até chegar a Calgary, em julho de 2020. Acompanhe: www.instagram.com/filipemasetti.
Tradução e adaptação: Luciana Omena
Crédito das fotos: Arquivo Pessoal
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