Filho caçula de três irmãos, Fernando Guimarães nasceu em São Paulo quando seus pais já haviam se mudado do interior para a capital. Trabalhar com cavalos é o que ele sempre se imaginou fazendo e hoje se sente realizado ao passar a maior parte do seu dia montado atendendo seus pacientes na Hípica de Santo Amaro em São Paulo.
Ele conta que a diferença de idade entre os irmãos é de dez anos. Assim, quando ele nasceu seu irmão do meio já tinha dez anos. Fernando é irmão do atual técnico da Seleção Brasileira de Voleibol Feminino José Roberto Guimarães, ambos apaixonado por cavalos desde criança. Aliás, a sensibilidade dos dois e o amor por esses animais ficam quase inexplicáveis colocando em palavras.
Fernando sempre teve paixão pelo interior, tanto que não via a hora de chegar na casa dos parentes em Araraquara, São Carlos, Descalvado. Passou a infância no sítio e as memórias são as melhores possíveis. Algo que ele conta ser mais do que uma paixão, um vício, já que desde que se lembra pensa em cavalo 24 horas por dia. Das brincadeiras na infância, portanto, ao que se tornou sua profissão.
Quase terminando a faculdade de fisioterapia pensou abandonar tudo. Até que uma luz em forma da sua orientadora contou sobre uma terapia que utilizava cavalos. Que ele poderia, como fisioterapeuta, buscar qualificação e unir algumas de suas paixões. Conversamos com ele para entender como chegou ao dia a dia corrido de hoje e a abrir as portas do Brasil para esse novo tratamento. Confira!
Conta o que você mais lembra do período da sua infância com os cavalos.
“Passamos a infância no interior. Na minha memória lembro sempre da minha primeira vez com cavalo. Eu tinha 5 pra 6 anos de idade e estava na fazenda do meu tio-avô em Descalvado/SP. Mexendo naquele bicho, a coisa mais linda do mundo. Mas eu não montava ainda, então ficava vendo o Zé Roberto montado.
Ele saía para cavalgar com nossos primos da idade dele e eu tinha que ficar para trás, pois que era muito novinho e eu não podia montar. Tenho essa lembrança muito forte da minha infância com relação a cavalos. Minha mãe falava que eu já andava a cavalo desde a barriga dela. Claro que isso eu não lembro (risos), mas a minha primeira lembrança é com 2 anos de idade. Tirei uma foto ao lado de um pôneizinho na Feira da Fraternidade. Depois dessa, a lembrança com o Zé Roberto ficou muito forte para mim.
Minha relação é muito intensa com cavalo desde criança, sem dúvida. Eu trocava qualquer coisa para ir para fazenda e ficar com os cavalos. Tem uma outra lembrança que ficou marcada também, Um dia, eu montei no cavalo às 6 horas da manhã para ajudar a tirar leite na fazenda. Às 10 minha tia falou para minha mãe ‘tira do Fernando de cima do cavalo’. E assim seguiu o dia inteiro.
Até às 6 horas da tarde, quando minha tia falou de novo e aí a minha mãe veio com a varinha de marmelo e já sabe o que aconteceu (risos). O ‘galo cantou ali’, minha vó ficou super brava, minha mãe também, mas enfim eu lembro disso, algo que me marcou literalmente”.
Uma coisa de alma mesmo?
“Essa minha coisa com cavalo eu acho que é um pouco diferente. Porque acho que não é nem paixão, nem amor, é uma coisa de vício mesmo. Muito forte. É uma coisa que se você deixar eu fico falando de cavalo 24 horas por dia. Meu mundo gira em torno do cavalo. Minha tia sempre falava que eu era o neto mais parecido com meu avô, que era mercador de cavalo, assim como meu pai.
Na família todo mundo monta ou montava, minha mãe, o Zé Roberto também gosta muito de cavalos. Então, acho que pedi tanto a Deus para me deixar perto deles, andar a cavalo. Eu ficava só pensando em cavalo o dia inteiro quando era criança, que ele atendeu as minhas preces. Hoje eu fico o dia inteiro em cima de cavalo todos os dias.
E eu já fiz muita coisa com cavalos nesse meio tempo: montei em rodeio, saltei, fiz adestramento, domava os meus cavalos. Hoje, além do meu trabalho, eu gosto de sair com meus amigos e meu irmão no domingo, tenho dois marchadores, e cavalgamos por mais de uma hora como lazer”.
Então você sempre soube que queria trabalhar com cavalos?
“Na verdade, não. Entrei para a faculdade de fisioterapia e uns 2 meses antes de me formar fui conversar com a minha coordenadora. De repente, achei que não era aquilo que eu queria para a minha vida. Eu achei que fosse, porque sou da área de esportes, fui jogador de voleibol, joguei aqui e fora do Brasil. Por isso imaginei que eu fosse trabalhar com a parte de ortopedia, reabilitação de atletas.
Antes de mais nada, o Zé Roberto, meu irmão, já era um jogador de alto nível na época e eu tinha certeza que ele seria técnico. Pensei que meu caminho era trabalhar com ele nessa área de reabilitação. De tal forma que parti para essa área, mas no final da faculdade vi que não era nada daquilo que eu queria. Pensei, inclusive, em abandonar a faculdade, nem me formar, faltando pouco tempo para acabar.
Como resultado dessa conversa, ela comentou comigo que me via falando de cavalo o dia inteiro e também percebia como eu me dava bem com as crianças do setor de neurologia. E me contou de uma técnica, que ela não sabia muitos detalhes, mas que se chamava hipoterapia, na época já bastante difundida na Europa e nos Estados Unidos. E o que me chamou atenção, então, foi a possibilidade como fisioterapeuta poder conciliar um trabalho com crianças e cavalos.
Era o que eu mais queria. Me formei, vendi meu carro e mudei para a Áustria. Morei por uma temporada no centro onde fiz o curso, enquanto jogava voleibol em um time de lá. Mesmo formado, ainda não podia montar com os pacientes, então trabalhava nesse centro limpando baia, conduzindo cavalo”.
Quando voltou já implementou a técnica no Brasil de cara?
“Fiz o curso e voltei para casa por volta de 1988, 1989, e comecei a trabalhar com hipoterapia sem entender exatamente aonde isso ia chegar. Por isso hoje eu tenho orgulho muito grande de ter sido o primeiro aqui com essa técnica de reabilitação com cavalos. Fui o primeiro a trabalhar com isso aqui no Brasil e também fui o primeiro fisioterapeuta latino-americano a se apresentar no Congresso Mundial de Hipoterapia na França em 2000.
E as coisas tomaram proporções gigantes, só foram aumentando. É um orgulho ver, mesmo que indiretamente, muitas pessoas trabalhando com isso. E eu formei muita gente também. Até 2016 eu dava o Curso Brasileiro de Hipoterapia. É um trabalho fundamental e que começa a ser quase que obrigatório aqui no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos é como complementação das terapias convencionais.
Voltei várias vezes aos Estados Unidos e à Europa depois, a fim de fazer alguns outros cursos. E hoje eu trabalho na Hípica de Santo Amaro, faz 20 anos. Eu e a equipe atendemos 150 pacientes por semana. Desse total, 80 são meus pacientes e mais quatro terapeutas atendem os demais. Fico em cima de um cavalo de terça a sábado, das 8 da manhã até às 5 da tarde todas as semanas.
Ninguém faz mais do que eu no mundo. Só para exemplificar, estou quase dando a minha quinta volta ao mundo a cavalo. Em todos esses anos são mais de 50.000 horas; 100.000 atendimentos e 180.000 km a cavalo fazendo terapia”.
Há diferença entre a hipoterapia e a equoterapia?
“A equoterapia é um método terapêutico e educacional, que utiliza o cavalo dentro de uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar, nas áreas de saúde, educação e equitação. Dentre dela existem algumas áreas e uma delas é a hipoterapia, programa essencialmente da área de saúde, voltado para as pessoas com deficiência física e/ou mental. Ou seja, destinada ao fisioterapeuta.
Como sou fisioterapeuta e foi assim que eu aprendi na Europa, que a hipoterapia era feita pelos fisioterapeutas, então é o que eu faço. Realizo uma reabilitação em cima do cavalo como fisioterapeuta que eu sou e eu tento conciliar a hipoterapia com uma outra função dentro do esporte. De dia trabalho na hípica, sou cavaleiro, e a noite eu sou técnico de vôlei paralímpico”.
Que bacana! Conta um pouco mais sobre esse trabalho.
“Eu tive o prazer e a honra de trabalhar com o Zé Roberto por um tempo nas equipes de alto rendimento e na seleção brasileira de voleibol. Assim, desde 2009 eu estou no esporte paralímpico. Em 2011 assumi a seleção brasileira masculina e fomos para as Olimpíadas do Rio em 2016. Nesse ínterim, a gente tirou o Brasil do 15º lugar no mundo para segundo.
Somos bicampeões pan-americanos, campeões da Copa América e de vários torneios internacionais; fomos ainda vice-campeões da Copa do Mundo e vice-campeões Mundiais. Mas, infelizmente ficamos em quarto lugar na Rio2016. Não consegui fazer a equipe render da maneira que eu gostaria.
Desse modo, saí da seleção depois de 2016, mas continuo com o vôlei. Hoje eu sou técnico da equipe masculina do Paulistano e sou consultor técnico da seleção feminina paralímpica. Meu intuito é voltar para a seleção feminina. Nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru, eu fui como assistente técnico.
Convivo com esses dois mundos, gosto muito dos dois, mas se precisar optar aí não tem nem o que falar. Eu vou para o cavalo, que é a coisa que realmente me realiza. Fazer bem para essas crianças, fazer bem para as pessoas, é uma coisa muito interessante. Atendo pacientes de todas as idades, mas 90% são crianças”.
Trabalhar com cavalos te realiza então?
“Para responder essa e fechar eu vou te contar uma história que me representa bem. Tenho um paciente que na época desse diálogo tinha 4 anos de idade. Ele chegou para mim e falou ‘tio Fernando, você gosta muito de cavalo’, respondi que sim, gostava muito de cavalo. Estávamos em meio a uma sessão de terapia. Em seguida ele me perguntou se eu andava a cavalo todos os dias, falei que sim, todo dia. Depois ele quiser saber se eu montava o dia inteiro, respondi que sim.
Por fim, ele perguntou: ‘e você não trabalha, não?’. Aquilo ficou marcado para mim, porque é assim para eles, montar é um prazer, é um lazer. Enquanto para mim também, é a mesma coisa. Minha resposta final para ele foi: ‘eu não trabalho, mas não conta ninguém, fica como o segredo nosso’. Então é assim que vivo meu dia, um prazer muito grande de estar em cima dos cavalos, ajudar essas pessoas.”
Por Luciana Omena
Crédito das fotos: Arquivo Pessoal
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