Depois de oito anos e 25 mil quilômetros a cavalo, a odisseia de um cowboy terminou onde começou. Filipe Masetti Leite conta como foram os momentos finais de sua longa jornada
O ar ainda estava fresco quando o sol apareceu. Com nuvens ‘penduradas nas Montanhas Rochosas’ à minha direita e um céu iluminado à minha esquerda, comecei os 27 quilômetros finais de minha jornada a cavalo pelas Américas até o Calgary Stampede Park.
Depois de percorrer mais de 25 mil quilômetros por 12 nações nos últimos oito anos, este foi meu último dia na sela. Não é sempre que eu uso um novo chapéu 100x Smithbilt – presente do Stampede – e visto uma camisa recém-passada para um dia de cavalgada. Mas naquela linda sexta-feira, 3 de julho, minha última longa viagem do Alasca a Calgary foi chegando ao fim e eu queria parecer o meu melhor.
Montado em Mac, com minha linda namorada argentina Clara Davel ao meu lado, montada em Smokey, e com o presidente do Calgary Stampede, Dana Peers, em um palomino chamado Oz, cavalgamos em silêncio. Da sela, vi meu El Dorado ao longe, o centro de Calgary iluminado em laranja e dourado pelo sol nascente.
Eu estava muito nervoso e meu cavalo podia sentir. Mac empinou enquanto caminhávamos para o sul, sentindo como eu estava tenso. Meu coração parecia que ia sair do meu peito. Meu outro cavalo, Smokey, decidiu me ignorar e levou Clara com graça. Aqueles dois se amam.
Logo após a rodovia 1A South, duas sombras apareceram no horizonte. Quando chegamos mais perto, percebi que as silhuetas eram policiais montados a cavalo. Fui rapidamente transportado para todos aqueles momentos em que estranhos saíam para me cumprimentar, me acompanhar e me manter a salvo. Todos os tipos de pessoas, prontas para me ajudar a realizar meu sonho.
Surpresas
“Bom dia, estaremos acompanhando você hoje, enquanto você entra a cavalo no centro de Calgary”, disse um dos oficiais, um homem alto, com quase 40 anos. Ele quase derrubou o capacete. Eu sorri em agradecimento. Dessa forma, fizemos uma curva à direita na 12 Mile Coulee Rd e eu quase congelei.
Nos dois lados da estrada, estavam longas filas de veículos, enquanto cerca de 50 voluntários, policiais e funcionários da mídia aguardavam nossa chegada. “Filipe, CTV, CBC e Global Television vão fazer entradas ao vivo a partir daqui”, disse-me um voluntário animado quando eu saí da sela.
Foi uma comparação gritante com as últimas semanas. Devido à pandemia da Covid-19, evitamos a civilização e seguimos a estrada margeando as florestas de Hinton para Cochrane. No meio das Montanhas Rochosas e no sopé, estávamos imersos na natureza.
Difícil imaginar que apenas oito dias antes eu fui seguido por um urso pardo perto da montanha Corkscrew e agora estava sendo emboscado pela mídia em Calgary. Ambas as experiências assustadoras deixaram meus joelhos tremendo na sela e minha boca seca.
Depois de falar com a imprensa e agradecer a todos os voluntários do Calgary Stampede que, mesmo durante essa pandemia, continuam mostrando a força de seu espírito comunitário, começamos a atravessar a cidade cosmopolita. “Certifique-se de aproveitar cada segundo”, sorriu Peers conforme avançávamos.
Todavia, às 9 horas da manhã, embora não tivéssemos liberado nossa rota com antecedência devido à pandemia, as ruas estavam cheias. Pessoas com trajes western sorriam com os rostos escondidos por máscaras, ao passo que permaneciam em distância segura. “Bem-vindo, Filipe”, uma frase que ouvi várias vezes enquanto tentava conter a tempestade de emoções dentro de mim.
Oportunidades únicas
Sob um céu agora azul-claro e sem nuvens, eu me inclinei para dar um tapinha no pescoço de Mac e agradecê-lo, então as lágrimas começaram a fluir. Chorei tanto que comecei a soluçar. Eu não conseguia controlar ou parar. Era como se tudo que eu sentisse e experimentasse nos últimos oito anos tivesse saído da minha alma naquele momento.
Nessa jornada, eu tive mil casas. Fiquei impressionado com as pessoas de bom coração que me receberam com refeições luxuosas e humildes. Os lugares deslumbrantes que eu vi. Os cavalos majestosos que montei. Neste país maravilhoso, passei um tempo com a banda indiana Osoyoos e aprendi a treinar cavalos selvagens com o mestre cavaleiro Aaron Stelkia.
Assim como cavalguei ao lado do lago Kluane de Yukon e lutei contra uma terrível tempestade de neve nas Montanhas Rochosas no meio do verão. O estrondo das ferraduras, o rangido da sela, o farfalhar das folhas sempre serão a minha trilha sonora.
E a incrível vida selvagem. Vi castores, lobos, um alce gigante, vaca cuidando de seu bezerro. Explorei os infinitos usos do alce. Comi lasanha de alce em Teslin, Yukon. Participei do Festival Cultural Adaka em Whitehorse e vi como fazer uma canoa usando a pele de um alce.
Cruzei caminhos com três ursos por dia no sul de Yukon, mas o pior era aquele grande urso ameaçador de Albertan. As coisas são maiores aqui. E eu sei que ele sabia que eu comia macarrão com carne de urso no rio Toad.
Sonho
Inesperadamente, logo após o meio-dia, vi o Stampede Park nos ouvidos de Mac. Há oito anos, parti do Greatest Outdoor Show on Earth, ou seja, o maior show ao ar livre da terra, como é conhecido o rodeio de Calgary. Um cowboy desconhecido com um sonho impossível.
Antes de sair naquele quente dia 8 de julho de 2012, muitos me chamavam de louco. Disseram que não conseguiria. Que eu morreria. Agora, lá estava eu, à frente da Calgary Stampede Parede, mesmo que não acontecendo no seu normal, depois de atravessar as Américas na sua totalidade.
Peguei a mão de Clara e agradeci por seu compromisso com esse sonho. “Sem você eu não estaria aqui, amor”, eu disse a Clara enquanto ela também enxugava as lágrimas do seu lindo rosto. Virei-me para Peers e vi que ele também havia chorado. “Obrigado por acreditar em mim, senhor”, eu disse a ele antes de nos abraçarmos. Ele sorriu e assentiu. Nós não precisamos de nenhuma palavra.
Quando desci da sela, o sorriso de Sheilagh Haney, meu amigo do ensino médio, me transportou para casa. Marie Aitken, que nos emprestou o veículo de apoio para esta jornada final, me abraçou com lágrimas nos olhos. Então eu abracei Laura, esposa de Peer.
Por um segundo, parecia que eu estava abraçando minha própria mãe. Eles foram substitutos maravilhosos para meus amigos de infância e família que não puderam comparecer devido a restrições de viagem.
Gratidão
Falei ao vivo para a Global Calgary e segui em direção ao palco montado na arena onde ocorreu uma cerimônia. As arquibancadas, que estariam lotadas com milhares de turistas de todo o mundo, estavam assustadoramente vazias. Alguns colegas disseram algumas palavras, depois tentei falar através das minhas lágrimas.
Finalmente, o prefeito Naheed Nenshi generosamente me deu a ‘chave da cidade’. Uma honra que agora compartilho com a rainha da Inglaterra, Dalai Lama, Bob Dylan, Bill Clinton e outros visitantes conhecidos.
Antes da cerimônia terminar, eles cometeram o erro de me dar uma garrafa de champanhe para estourar. Eu pulverizei todo mundo antes de tomar um longo gole da bebida borbulhante – me senti como a grande lenda do automobilismo brasileiro Ayrton Senna.
A gratidão que senti em meu coração naquele momento me fez sentir como se estivesse levitando. Das centenas, senão milhares, de pessoas que me ajudaram a alcançar esse sonho nos últimos oito anos e aquelas que me carregaram durante minha última longa viagem do Alasca a Calgary.
Foi graças ao Calgary Stampede e seus voluntários, a unidade policial montada, os policiais em carros de patrulha, os socorristas e a cidade de Calgary que cruzei a linha de chegada com segurança.
Quando a cerimônia acabou, tive que dizer adeus aos nossos filhos, Smokey e Mac. Estou tão orgulhoso desses dois majestosos cavalos mustangs que vi evoluir de equinos assustadores para animais confiantes. A força, resistência e potência deles permitiram que eu percorresse os 800 quilômetros finais de Grande Prairie para Calgary em apenas um mês e dez dias – um feito notável.
Eles são os verdadeiros heróis desta jornada nessa minha parte final pelas Américas. “Eu amo muito vocês, meninos e até breve … agora descansem”, eu disse antes de carregá-los no trailer. Clara e eu sentiremos muita falta deles.
Nunca desista de um sonho
Desde a notícia de que Dana Peers me escolheu como Embaixador 2020 no início de junho, muitas pessoas perguntaram se eu estava com o coração partido que o rodeio e o desfile foram cancelados pela primeira vez em mais de 100 anos. O ano em que eu cavalgaria à frente de tudo.
A verdade é que, quando ouvi pela primeira vez sobre o cancelamento em abril, fiquei triste. Mas se há uma coisa que aprendi nessa jornada é que a positividade é uma das coisas mais importantes da vida. Foi a única razão pela qual pude dar o primeiro passo em 2012 e, sem dúvida, por que cheguei vivo em 2020.
Quando você acredita em si mesmo, concentre-se, trabalhe duro e mantenha-se positivo – não importa o que esteja acontecendo ao seu redor -, seus sonhos se tornarão realidade. Se minha longa jornada pelas Américas puder deixar você com um pensamento, seria: espero que você encontre coragem para seguir seus sonhos e força para continuar mesmo quando uma pandemia global se abater sobre seus planos.
Lembre-se sempre, todo mundo tem uma jornada. Não esqueça de começar a sua!
Por Filipe Masetti Leite para o Toronto The Star
Em sua terceira, e última, longa jornada, o jornalista e cavaleiro saiu de Fairbanks, Alasca, no dia 17 de maio de 2019, e cavalgou por cerca de quatro mil quilômetros até chegara a Calgary, Alberta, Canadá, no dia 3 de julho de 2020. Fechou um ciclo de oito anos cavalgando pelas Américas e mais de 25 mil quilômetros percorridos no lombo do cavalo
Acompanhe: @filipemasetti
Crédito das fotos: Divulgação/Arquivo Pessoal
Foto de chamada/crédito: Diane Nickel
Tradução e adaptação: Luciana Omena
Veja mais notícias no portal Cavalus