Cripto e Prognatas

Luciano Rodrigues, cavaleiro e pesquisador, fala nesse artigo sobre criptorquídicos e prognatas

Há uns tempos atrás, a comunidade do Quarto de Milha foi palco de muitas discussões. Nas redes sociais, nos grupos de Whatsapp, com os amigos, em todas elas a conversa girava em torno do novo Regulamento do Serviço de Registro Genealógico do Cavalo Quarto de Milha, especificamente, o artigo 17 que permite a reprodução dos animais criptorquídicos e prognatas.

Características dos Criptorquídicos e Prognatas

Conforme a 15ª edição do regulamento, prognatas e criptorquídicos são: Prognatismo: animais com projeção da mandíbula ou maxila, “sem contato oclusivo entre os incisivos centrais superiores e inferiores”.

Criptorquidismo: significando menos de dois testículos visíveis e simétricos, em tamanho e consistência, na parte de baixo do escroto, a partir dos 30 meses de idade.

Segundo o médico veterinário Dr. Ahmed Tibary, da Washington State University, criptorquidismo é causado por uma combinação de fatores genéticos, epigenéticos e ambientais. O criptorquidismo bilateral resulta em esterilidade. A criptorquidia unilateral é mais comum, e o animal geralmente é fértil por causa da produção de espermatozoides do testículo que desce normalmente.

O testículo que não desceu até o sacro escrotal, ou seja, está localizado internamente, produzem hormônios masculinos, e os animais criptorquídicos têm características sexuais secundárias e comportamento de acasalamento normal.

Normal e Patológico

Georges Canguilhem em seu livro “O normal e o patológico” aborda a noção de saúde e doença. Para ele doença é aquilo que causa o desequilíbrio do corpo. Deste modo, a doença pode ser gerada por fatores genéticos ou por questões ambientais. No entanto, como vimos em algumas discussões de leigos, criptorquidismo e prognatismo não são doenças. São mutações genéticas como várias outras que interferem na vida. Um olho azul, outro castanho, excesso de manchas brancas, até o surgimento dos cascos dos cavalos, são mutações genéticas.

Por isso o regulamento não entende como uma doença, mas sim como uma característica indesejável. Criptorquidismo e prognatismo não, obrigatoriamente, são passadas de geração para geração, filhos podem ser portadores mesmo o pai possuindo os dois testículos, e vice e versa. Essa é a 1ª Lei de Mendel.

Freckles Playboy

Em 1980 a AQHA adota a Regra 212 na qual só poderia ser registrado um potro por égua no ano, independente de como foi produzido. Em 1996, Kay Floyd proprietária de Freckles Playboy, realizou dois cruzamentos com uma égua chamada Havealena, uma com transferência de embrião em uma égua receptora e outra na própria Havealena.

Destes procedimentos, nasceram dois animais: uma potra e um potro. Antes disso, Freckles Playboy tinha gerado outros 5 potros, todos criptorquídicos. Desta forma, Kay Floyd registrou a potra. Pela Regra 212, o potro não poderia ser registrado. Contudo, após um ano de vida, o potro apresentou os dois testículos, isso fez com que sra. Floyd movesse uma ação junto a AQHA para anular o registro da potra e, em seu lugar, registrar o potro. A AQHA recusou, gerando um processo jurídico, porém, outras decisões infundáveis da AQHA fez com que fosse revertida a ação.

Não se sabe se é este o caso que a ABQM utilizou para a fundamentação da decisão, pois é um caso a parte dentro de um processo de clonagem, mas que não tem relação com clonagem. Pode ter sido um erro de interpretação.

Contudo, uma questão a ser respondida pela hermenêutica jurídica é se estudos não reconhecidos pela ABQM, como a clonagem (Seção IV, art. 30), podem ser utilizados para decisões sobre regras de registro. Isso se a próxima decisão do Conselho Deliberativo Técnico não for o registro de animais clonados.

Posicionamento da AQHA

No site da AQHA encontramos a versão 2021 do Official hand book of rules and regulations, no REG 109 encontramos todas as características indesejáveis para a raça Quarto de Milha.

Diferente da AQHA, a ABQM difere características indesejáveis e os defeitos genéticos. Ponto positivo para a ABQM, pois a regra envolvendo a Regra 109 pela AQHA é generalizada para ambos os casos.

No entanto, a decisão da ABQM ainda não está de acordo com a AQHA, não se sabe até aqui se é uma questão e atualização do regulamento. Pois na Regra 107, na qual aborda sobre Registros Extraordinários, a AQHA informa:

O Comitê Executivo deve ter autoridade para declarar elegível para registro apenas como reprodutor, um cavalo cujo certificado de registro foi cancelado anteriormente, mas, na opinião da maioria do Comitê Executivo, é excelente pelo desempenho ou produção, e, portanto, digna de registro como reprodutor, embora falte algum requisito técnico das regras da AQHA para permitir que ele permaneça registrado (Tradução do autor).

Assim, na Regra 107.1.3, a regra diz que “Um cavalo não é elegível para consideração sob esta regra se tiver qualquer condição listada no REG109 como um defeito genético”. Esse é o problema da regra 109 da AQHA, generaliza características indesejáveis junto com os defeitos genéticos.

Contras da decisão

Começamos pelos contras. Acompanhando algumas discussões nas redes sociais, muitos são contrários à decisão por entender que estas características indesejáveis são doenças e que obrigatoriamente passam para a sua prole.

Outro ponto são as “teorias da conspiração”, como se as decisões são para atender, somente os gestores da ABQM.

Assim como a de entender como um retrocesso à decisão da ABQM, inclusive com possíveis medidas jurídicas para reparação de danos aos proprietários que castraram seus animais.

Em conversa com o médico veterinário Dr. Éder Ribeiro da Rosa (PUC/PR), especialista em odontologia equina, animais prognatas a campo, apresentam uma dificuldade na alimentação a pasto, causando um déficit nutricional, interferindo no seu desenvolvimento físico. Os testículos internos nos casos dos criptorquídicos, não produzem sêmen, no entanto, produz em escala normal testosterona, mantendo assim, um comportamento de garanhão.

Prós da decisão

Os criadores e técnicos a favor da decisão entendem que é um avanço, inclusive da própria ciência com os estudos genéticos. De fato as decisões do CDT da ABQM deveria se pautar nos estudos científicos, porém, vejo como uma necessidade dentro da ABQM de uma comissão científica para incentivo e fomento a pesquisa.

Outro ponto é o de não entender como uma doença, mas sim como uma característica que não necessariamente passa para a próxima geração. Pensemos: um garanhão criptorquida, para que ele passe para a sua prole esta característica, seus descendentes devem ser machos, e isso tem 50% de probabilidade, já que as fêmeas não tem o mesmo problema, então, teríamos fêmeas sem essas características.

Casos de prognatas são mais complicados, já que os animais a campo não possuem alguma forma de suplementação do déficit nutricional. Alguns criadores informam que podem suprir essas necessidades com rações e outros suplementos, neste caso os animais não sofrem com a característica.

Do ponto de vista biológico, podemos castrar todos os criptorquicos e prognatas do planeta, ainda assim, corre-se o risco de nascer algum descendente. Isso é mutação genética. Estaríamos enxugando gelo.

Referências:

  • ABQM. Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha. Regulamento do Registro Genealógico do Cavalo Quarto de Milha. 15. ed. São Paulo/SP, 2021.
  • ACVS. American College of Veterinary Surgeons. Cryptorchidism (Undescended Testicles) in Horses. Disponível em: https://www.acvs.org/large-animal/cryptorchidism. Acessado em: 4 abr 2021.
  • ALENCAR-ARARIPE, M. G. de; CASTELO-BRANCO, D. de S. C. M.; NUNES-PINHEIRO, D. C. S. Alterações anatomopatológicas na cavidade oral equina. Acta Veterinaria Brasilica, v.7, n.3, p.184-192, 2013.
  • AQHA. American Quarter Horse Association. Official hand book of rules and regulations 2021. 69 ed. Amarillo/TX: AQHA, 2021.
  • CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
  • STEVENS, L. T. Update on Antitrust and the Legal Issues Surrounding Cloning in the Equine World. Kentucky Journal of Equine, Agriculture, & Natural Resources Law, v. 9, n. 1, a. 2, 2016.
  • TIBARY, A. Male Genital Abnormalities of Animals. Disponível em: https://www.merckvetmanual.com. Acessado em: 02 abr 2021.

Colaboração: Luciano Ferreira Rodrigues Filho
Cavaleiro e Pesquisador | 
Haras Dom Herculano
Crédito da foto de chamada: Divulgação/Manual Veterinário Merck

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