Saúde & Bem-estar

Bioclimatologia auxilia na reprodução equina

Bioclimatologia estuda a correlação do clima com os ciclos vitais de animais e plantas

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Chega a estação fria e com ela a ‘estação de monta’. Mas por que isso acontece? E se quisermos cobrir nossas éguas em qualquer época do ano? As respostas para estas dúvidas têm razões técnicas tanto quanto econômicas ou mesmo práticas. Também é preciso levar em conta a grande diversidade climática e geográfica de nosso país.

Muitas destas explicações estão inseridas na área de conhecimento chamada de ‘bioclimatologia’, ou seja, o estudo da correlação que o clima tem com os ciclos vitais de animais e plantas. E, claro, o estudo do clima pertence ao campo da geografia. Juntando algumas pitadas de biologia, já podemos seguir adiante.

Bioclimatologia

A primeira informação a ter em mente é que as éguas são ‘poliéstricas estacionais’. Isto significa que elas têm ciclos estrais periódicos, durante mais ou menos metade do ano. Num artigo de revista, necessariamente temos que generalizar, mas vale lembrar que toda regra tem exceção, e dúvidas ou problemas precisam ser atendidos por um médico veterinário capacitado em reprodução de equinos. Mas, aproximadamente, o ciclo estral das éguas ocorre em intervalos de 21 a 25 dias. A égua fica fértil durante 3 a 5 dias, depois ocorre um intervalo de 18 a 21 dias, e assim sucessivamente, durante a primavera, verão e início de outono. Durante o inverno e nos períodos de transição, ela não cicla ou tem cios fracos, considerados subférteis, por vezes anovulatórias (quando a égua apresenta algum comportamento de cio, porém não chega a liberar um óvulo para possível fertilização).

É elucidativo visualizar estas duas épocas do ano, estro e anestro (= presença e ausência de cio), como duas ondas, com picos negativos e positivos de fertilidade. E os períodos de transição (quando a égua está entrando em anestro ou saindo dele) são os de fertilidade intermediária. Se fizermos uma superposição deste ciclo com um calendário, veremos que, no hemisfério Sul, o pico de fertilidade das éguas corresponde ao mês de outubro. Por que isto acontece?

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o fenômeno do anestro não tem relação direta com a temperatura ambiente, e sim com o fotoperíodo, que é a quantidade de luz solar que incide naquele local em 24 horas. No verão escurece tarde e amanhece cedo, no inverno é ao contrário. A geografia nos ensina que, quanto mais próximos estamos dos polos, maior a diferença entre fotoperíodo de verão e de inverno. Seja no polo norte ou no sul, no verão polar há o sol da meia-noite, quando o sol nunca se põe. Já no inverno o sol nunca nasce. No equador, em todos os 365 dias do ano, há doze horas de claridade e doze horas de período noturno. Tal como na maioria dos mamíferos, o mecanismo endócrino dos equinos reage ao aumento ou ao decréscimo do fotoperíodo numa cadeia hormonal que inibirá ou estimulará a produção dos hormônios reprodutivos, principalmente do feedback progesterona x estrógeno.

Ainda dentro dos termos que pertencem à geografia mais do que à medicina veterinária, os solstícios são os dias do ano mais longo (solstício de verão) e mais curto (de inverno). Entre eles, há os equinócios de primavera e de outono, em que, tal qual no equador, há luz durante exatas doze horas.

E, não por coincidência, estas são as datas das mudanças de estação. (A cada uma também corresponde, em cada cultura humana, uma importante festividade popular-religiosa, mas aí já estaremos divagando…). Assim, em datas aproximadas, para o hemisfério Sul:

  • 22 de março: equinócio de outono
  • 22 de junho: solstício de inverno
  • 22 de setembro: equinócio de primavera
  • 22 de dezembro: solstício de verão

De modo que mais ou menos no começo de fevereiro as éguas vão ficando menos férteis, com cios menos pronunciados e mais curtos. Sua hipófise já está reagindo ao progressivo encurtamento dos dias. Por experiência ou conhecimento técnico, todas as pessoas experientes, nos haras, sabem disso, e é por isso que “bate o desespero” para emprenhar aquelas éguas que ainda chegam a janeiro vazias. O anestro em si dura do fim de março até junho, e o pico de fertilidade das éguas se dá no mês de outubro, fenômeno também bem conhecido por todos que já tenham trabalhado ou estagiado em um criatório.

Contudo, nas zonas tropicais a ocorrência do anestro é tanto menos caracterizada quanto mais próximos estivermos do equador. No Brasil, isto significa que na região Sul – para baixo da linha de Sorocaba e Campinas, onde passa o Trópico de Capricórnio – as éguas costumam ter períodos de estro e anestro bem caracterizados, enquanto perto da linha do equador muitas delas nem têm anestro, ciclando o ano inteiro. E para o Brasil Central a resposta é “depende”, incluindo desde fatores genéticos a nutricionais, e também da maneira como o manejo reprodutivo é conduzido no criatório.

Mas tudo na natureza ocorre em ciclos. Até mesmo as plantas entram em dormência total ou parcial no inverno, quando quase não crescem, para que seu metabolismo, e também o solo, possam descansar e se regenerar. A alternância entre anestro e estro nada mais é do que uma possibilidade para que o organismo entre em descanso fisiológico, e que o potro seguinte nasça mais forte e bem formado. O mais tardar neste ponto é que devemos começar a pensar se um excesso de manipulação por meio da biotecnologia pode trazer prejuízo à qualidade de animais de nosso criatório.

De fotoperíodo artificial a tratamento hormonal, já existem muitas possibilidades de manter as éguas ciclando o ano inteiro – e, conforme explicado acima, em algumas regiões do Brasil elas irão ciclar naturalmente mesmo. Mas se o aparelho reprodutor entrar em exaustão fisiológica, as consequências podem ser potros menores e menos resistentes, ou ainda quebra na produção de leite – tanto no caso das matrizes (mães biológicas) quanto das receptoras (barrigas de aluguel), das quais ainda falaremos mais para frente.

Aqui como em quase tudo na vida, é necessário buscar o equilíbrio entre quantidade e qualidade. A antiga máxima de “dois potros a cada três anos” pode ser válida, ainda que haja éguas que nos brindam com um potrinho a cada doze meses, relojinhos reprodutivos, sempre gordinhas e boas leiteiras. Mas aqui a chave está na predisposição individual, não na ‘forçada’ artificial.

Curiosamente, o ciclo hormonal acontece também com os garanhões, ainda que em menor intensidade. Isto foi verificado em garanhões PSI destinados a acompanhar a estação de monta tanto no hemisfério norte quanto no sul. Já que nesta raça a única forma aceita de reprodução continua sendo a monta natural, ao término de uma temporada os sementais eram (e em alguns casos ainda são) embarcados para servir as éguas na outra metade do globo, com a intenção de maximizar a produção destes valiosos animais.

Passariam, por exemplo, seis meses do ano na Inglaterra e os outros seis na Austrália, ou ainda poderiam se alternar entre Brasil e Estados Unidos. Em tese, vivendo apenas no verão, a hipófise estimulada por longas horas de incidência de luz solar, os garanhões teriam contínua produção elevada de sêmen de boa qualidade. Só que… na prática, a partir do segundo ano a fertilidade e até a libido destes garanhões começava a decair. É que a eles não era permitido o descanso fisiológico sazonal, correspondente ao comportamento natural da espécie.

Isto também pode servir de alerta sobre o uso excessivo ou mal direcionado do fotoperíodo artificial em éguas, por exemplo, pretendendo que elas comecem a ciclar muito antes do que seria natural. E vale também para os casos de importação de matrizes e reprodutores de um hemisfério a outro: é natural que eles sejam sub ou até inférteis durante o primeiro ano de suas novas vidas.

Ano hípico

O ano hípico é um artifício criado que de certa maneira respeita esta sazonalidade dos nascimentos dos potros. Ao mesmo tempo, ele dá maior uniformidade às gerações de animais novos, o que é tanto mais importante quanto mais jovens eles começarem a competir. E também permite maior eficiência no fluxo de trabalho dos serviços de registro ginealógico das Associações de Criadores.

No hemisfério Sul, o ano hípico vai de 01 de julho a 30 de junho, e no hemisfério Norte, corresponde ao ano-calendário. Em algumas raças, notadamente no puro-sangue inglês, isto significa que todos os potros daquela geração compartilham o mesmo aniversário, no nosso caso, o dia 01 de julho. Mesmo que em seus documentos seja registrada sua data real de nascimento, para efeito de formação de categorias ou de “turmas”, como se diz nas corridas, é considerado que tenham nascido no início da temporada. Vem daí a expressão ‘mal nascido’: um potro nascido no final de janeiro ou fevereiro será agrupado com animais quatro a seis meses mais velhos do que ele.

Lá na frente, quando forem cavalos maduros, estes meses não farão nenhuma diferença, mas numa categoria de conformação ao cabresto de, por exemplo, potros de 12 a 18 meses, ou em estreantes nas pistas de corrida com dois anos de idade hípica, é uma diferença imensa, que apenas pelo efeito óptico, sem nem falar das desvantagens físicas reais (“aquele pequenino no meio dos grandões”) já chega a desvalorizar o produto. É por isso que nos haras de corrida o manejo reprodutivo começa bem cedo, antes do pico real de fertilidade, para que as éguas deem à luz seus potros o mais próximo possível do dia 01 de julho do ano subsequente. Lembrando que a gestação dos equinos é de onze meses e alguns dias, e que um nascimento em junho em tese faz com que o potro se torne “muito mal nascido”, no finalzinho da geração anterior. E antes que alguém pergunte, as visitas-surpresa dos inspetores das Associações existem sim…

Se deixarmos a natureza seguir seu curso, veremos que o maior índice de coberturas bem-sucedidas acontecerá em outubro, portanto, com grande parte dos nascimentos se dando em setembro do ano seguinte. Bioclimatologicamente falando, isto faz todo o sentido do mundo, pois o pico de crescimento das gramíneas se dá entre novembro e janeiro, coincidindo com o ápice de produção leiteira das éguas, do segundo ao quarto mês de vida do potrinho. Nesta fase os futuros campeões das pistas chegam a ganhar dois quilos de peso por dia – tudo isso vindo do leite de suas mães, ou das éguas receptoras, o que a esta altura dá no mesmo.

Mesmo que seja adotado o creep feeding, ou outra maneira de fornecimento de ração aos potrinhos, nesta idade eles ainda não ingerem quantidades importantes de concentrado. O mesmo se destina principalmente a fazer o condicionamento fisiológico do aparelho digestivo para a futura mudança de dieta. E somente uma égua bem nutrida dá leite de boa qualidade em quantidade suficiente, e as pastagens são o alimento principal dos equídeos. A natureza é sábia. Isto vale também como lembrete para o fato de que a super-alimentação da égua no final da gestação e logo após o parto não apenas é desnecessária, mas pode ser até prejudicial, com o risco de resultar em cólicas e laminites. Já por volta do segundo mês pós-parto, a produção leiteira da égua chega a vinte litros diários (!!), e aí sim a nutrição dela merece nossa atenção plena, sob pena de comprometer o desenvolvimento do futuro cavalo atleta.

Por Claudia Leschonski, MV
Crédito da foto: Jean Alves/Pexels

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